Fortes chuvas no estado afetaram populações tradicionais, consideradas mais vulneráveis
Porto Velho, Rondônia - Desde o início do mês, o quilombola Rogério Machado, de 43 anos, liderança do Quilombo dos Machado, em Porto Alegre, está dia e noite na função de arrecadar alimentos, roupas e itens de higiene para a comunidade, que teve 40% da área afetada pelas enchentes. Revivendo a tragédia de 2013, novamente cerca de cem pessoas do território, localizado no bairro Sarandi, epicentro do desastre na capital gaúcha, perderam tudo para a chuva. Na região, a água atingiu 2,5 metros de altura, deixando apenas os telhados à mostra.
Com residências feitas especialmente de madeira em áreas consideradas de maior vulnerabilidade, milhares de quilombolas e indígenas ficaram desabrigados devido à tragédia climática no Rio Grande do Sul. Segundo um levantamento da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do estado, em parceria com o Ministério da Igualdade Racial, todos os 140 quilombos certificados pela Fundação Palmares, e outros cinco em processo de reconhecimento, espalhados em 70 municípios, foram atingidos pelas enchentes, em menor ou maior grau.
No caso dos povos originários, o Ministério dos Povos Indígenas divulgou que 84 comunidades ligadas ao Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul foram afetadas direta ou indiretamente pelas cheias. Isso impactou aproximadamente 16.691 indígenas, o que corresponde a 5.183 famílias.
— Estamos há 20 dias debaixo d’água e contando com a ajuda de voluntários para comer, receber atendimento médico e fazer o cadastramento das famílias nos auxílios emergenciais. Porto Alegre tem muita especulação imobiliária e nós nunca fomos o foco da atenção dos governos. Isso nos deixa aflitos e sem saber quando vamos conseguir reconstruir nossas vidas — disse Machado, enfatizando que há casos de famílias que demoraram 30 anos para construir suas casas; todas levadas pelas chuvas.
Hortas perdidas
Odirlei Fidelis, cacique da aldeia Kaingang Van Ká, localizada no bairro Lami, extremo sul de Porto Alegre, contou que todos da comunidade foram atingidos — cerca de 70 pessoas. As casas de madeira ficaram inabitáveis e um buraco foi feito na terra para ajudar a escoar a água. Desabrigados e sem conseguir trabalhar com a venda de artesanato, principal fonte de renda da comunidade, eles montaram barracas de plástico na área menos afetada do terreno e aguardam a diminuição do nível dos rios.
— Perdemos tudo, inclusive nossa horta comunitária de verduras. E nós, indígenas, não vemos a reestruturação do estado chegando rápido aqui. Recebemos doações da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e mais nada. As comunidades indígenas e quilombolas que se ajudam entre si — relata Fidelis.
Mesmo com espaço reduzido, a aldeia abrigou emergencialmente 40 pessoas do povo Mbya Guarani da aldeia Pindó Poty, também situada no Lami. Os indígenas precisaram deixar suas casas após o córrego que atravessa a aldeia voltar a subir. Eles sofrem com alagamentos frequentes devido ao assoreamento do riacho e aos muros de mansões próximas que retém a água só em um dos lados.
Para o assessora jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa no Rio Grande do Sul, Verá Yapuá, a reestruturação das comunidades é urgente, visto que essas populações temem deixar suas casas e perderem seus territórios devido às disputas de terra no estado.
— Mesmo saindo de seus territórios nesse momento, a garantia de retorno se assenta na Constituição Federal. Mas houve resistência em sair por conta do medo de o direito ao retorno ser questionado posteriormente — explica.
Em Eldorado do Sul, indígenas do povo Guarani Pekuruty também precisaram ir para abrigos. Após a evacuação, eles foram surpreendidos com a demolição de parte da aldeia por agentes do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (Dnit). Alegando não terem sido avisados previamente que a obra para ampliação da BR-290 ocorreria no início de maio, a comunidade perdeu casas e uma construção que servia de escola.
No Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, uma das regiões mais afetadas de Porto Alergre, a água chegou a subir 2,5 metros — Foto: Agência O Globo
Reestruturação lenta
Em nota, o Dnit informou que a ação foi “emergencial para que se pudesse devolver a trafegabilidade no km 132 da BR-290” e “restabelecer a conexão entre Porto Alegre e os municípios da Região Metropolitana, Sul e da Fronteira Oeste do estado”, a fim de prestar assistência humanitária à população afetada. Ainda segundo a autarquia, o processo de licenciamento ambiental das obras teve aval da Funai e já havia sido comunicada aos indígenas. Em relação à construção de moradias, o Dnit disse que “estão previstas casas de alvenaria, mais seguras e adequadas às condições climáticas rigorosas”, mas não informou quando serão construídas.
A preocupação inicial das lideranças quilombolas e indígenas, de acordo com o vice-presidente da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) do Rio Grande do Sul, José Alex Mendes, tem sido salvar vidas e distribuir itens de necessidades básicas. Há diálogos com secretarias municipais e estaduais, além de ministérios, no entanto, diz Mendes, o início da reestruturação dos remanescentes de quilombos ainda não tem data prevista. Não há relatos de quilombos que precisarão ser realocados.
— As lideranças nos passam as demandas e, assim, conseguimos ajudar. Estamos com voluntários psicólogos auxiliando nas questões emocionais. Mas a reestruturação ainda é um tópico delicado — diz Mendes.
No bairro Menino de Deus, em Porto Alegre, Sandro Lemos, liderança do Quilombo dos Lemos, cobra celeridade no atendimento às vítimas. Após sofrerem uma tentativa de reintegração de posse em 2018, por parte do Asilo Padre Cacique, dezenas de quilombolas deixaram o local. As 25 pessoas que ficaram só haviam conseguido restabelecer o abastecimento de água no mês passado. Com a catástrofe, estão desabastecidas de novo.
— O quilombo não é titularizado e enfrentamos muitos ataques. Nossos familiares estão dispersos pela cidade, pagando aluguel sem ter condições e precisamos de um plano para que eles possam voltar — desabafa Lemos.
Real impacto
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelos processos de regularização fundiária, informou que criou um grupo de trabalho para fazer o diagnóstico dos impactos da tragédia e identificar as áreas prioritárias a serem atendidas por meio do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Até o momento, das 140 comunidades, apenas 14 já tiveram seus relatórios de identificação publicados. Eles serão beneficiados com acesso a créditos, ações de infraestrutura e produção agrícola.
O Incra pontuou ainda que há dificuldades de acesso a muitas comunidades em áreas rurais, mas garantiu que “todas as atividades previstas serão realizadas”.
No âmbito dos povos originários, o MPI relatou ter contatado 49 cidades com a presença de terras indígenas para cobrar ações emergenciais, mas apenas nove retornaram com ofício detalhando dados de infraestrutura, quantidade de desalojados e abastecimento de água e energia. Um crédito de R$ 60 milhões foi solicitado para limpeza e transporte de resíduos, instalação de moradias provisórias, kits agrícolas e de apoio aos indígenas que dependem do trabalho de artesanato.
Fonte: O GLOBO
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